A segurança no trânsito, especialmente em um país como o Brasil, é um tema que exige uma abordagem inovadora e profunda, longe dos clichês que tantas vezes envolvem essa discussão. Quando falamos de trânsito, estamos tratando da interseção de múltiplas facetas do ser humano. Não existe uma separação clara entre o motorista, o pai, o cidadão ou o profissional. Cada um desses papéis está entrelaçado na forma como nos comportamos ao volante ou como nos movemos pelas cidades, seja como pedestres, motociclistas, ciclistas ou motoristas. Esse ponto, muitas vezes ignorado, é essencial para compreendermos o trânsito como um reflexo das sociedades e suas dinâmicas de respeito, empatia e responsabilidade.
Nos Estados Unidos, na Europa e no Japão, encontramos exemplos que podem oferecer ao Brasil não apenas modelos a serem replicados, mas lições que vão além da engenharia de trânsito ou das campanhas educativas. Nessas regiões, as medidas para promover a segurança no trânsito envolvem mais do que apenas a implementação de leis rígidas. Elas se baseiam na construção de uma cultura de respeito mútuo entre cidadãos. No Japão, por exemplo, há um forte senso de coletividade, onde cada indivíduo entende que suas ações afetam os demais, seja nas estradas, no transporte público ou nas calçadas. O pedestre, o motociclista, o ciclista e o motorista compartilham um espaço comum, e a atenção ao outro é natural e cotidiana.
Já na Europa, em países como Suécia e Holanda, políticas como o "Visão Zero" (zero mortes no trânsito) mostram como a segurança viária pode ser uma prioridade nacional. Essas nações incorporaram o conceito de que nenhuma fatalidade no trânsito é aceitável, e isso envolve uma combinação de medidas preventivas, como infraestrutura adequada, educação continuada e rigor na aplicação das leis. O diferencial é que essas iniciativas não são vistas apenas como responsabilidades do Estado, mas como parte de um pacto social, onde o respeito no trânsito reflete o respeito à vida em comunidade.
Nos Estados Unidos, embora haja grandes variações entre os estados, o uso intensivo de tecnologia tem sido uma ferramenta poderosa para aumentar a segurança no trânsito. Veículos inteligentes, campanhas de conscientização e uma forte presença policial nas vias, são apenas alguns dos elementos que contribuem para a redução de acidentes. No entanto, mesmo lá, a chave para o sucesso reside em um fator humano: o compromisso das pessoas em respeitar as regras e, mais importante, em respeitar umas às outras.
Aqui no Brasil, as leis de trânsito são amplas e detalhadas, mas a anomia — o enfraquecimento das normas e do controle social — prevalece, levando a um ciclo de impunidade que perpetua o caos nas ruas. As infrações são comuns, e a fiscalização, muitas vezes, se torna ineficaz diante da magnitude dos problemas. Não é raro ouvirmos que as leis existem, mas não são respeitadas nem cobradas, e isso cria um ambiente onde o desrespeito se enraíza. Um trânsito mais seguro não depende apenas de multas mais severas ou de campanhas pontuais. Ele exige uma mudança na forma como nos enxergamos uns aos outros enquanto cidadãos.
A mudança no Brasil pode, sim, vir de uma nova abordagem, que não se limite à simples punição ou à educação imposta. Precisamos construir uma nova mentalidade, onde pedestres, condutores e governantes compreendam que estão inseridos em uma dinâmica que envolve cooperação e cuidado com o próximo. A sociedade precisa ser convencida de que o trânsito não é um campo de batalha, onde a lei do mais forte prevalece, mas um espaço de convivência, onde cada vida importa.
Para interromper a guerra no trânsito brasileiro, talvez a maior inovação que podemos buscar seja a humanização desse espaço. Devemos olhar para além da legislação e da infraestrutura, por mais essenciais que sejam. Precisamos de uma transformação cultural, que reconheça o valor da vida de cada pessoa nas ruas. Isso só será possível com o engajamento de todos — motoristas que se enxergam como pais, filhos e profissionais, e não apenas como indivíduos em um veículo. E governantes que vejam na segurança viária uma prioridade tão importante quanto a saúde ou a educação.
A inspiração está diante de nós, nos exemplos do Japão, Europa e Estados Unidos. Eles nos mostram que uma sociedade que se respeita é uma sociedade que respeita o trânsito.
Doutor em Ciências Humanas e Mestre em História Econômica pela USP, criou e coordenou o Programa PARE do Ministério dos Transportes, foi Diretor do Departamento Nacional de Trânsito – Denatran, Secretário-Executivo do Gerat da Casa Civil da Presidência da República, Doutor Honoris Causa pela Faculdade de Ciências Sociais de
Florianópolis – Cesusc, Two Flags Post – Publisher & Editor-in-Chief.